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Fogo contra Fogo e o reflexo da obsessão

  • 25 de mai. de 2023
  • 5 min de leitura

A grande obra-prima de Michael Mann tem, sobretudo, em seus personagens, muitas dimensões, mas, essencialmente, trata dos dois lados de uma mesma moeda. A história é sobre violência e ganância, e é mais ainda sobre ciclos viciosos, que prendem suas figuras centrais (brilhantemente vividas por Robert De Niro e Al Pacino em mais um de seus marcantes trabalhos juntos) em uma grande perseguição de gato e rato. No entanto, quase nunca fica claro quem é a caça e quem é o caçador. No início, parece fácil encaixar as peças, mas, a cada momento, as posições de poder parecem se inverter, alguém vira o jogo e toma a dianteira rumo ao maior objetivo: superar o outro.

De forma geral, a história de “Fogo contra Fogo” parece clássica e mais uma entre tantas, um detetive, Vincent Hanna (Al Pacino), que segue os rastros de uma quadrilha de assaltantes capitaneada por uma grande mente do crime, Neil McCauley (Robert De Niro), que ruma ao seu último golpe. Mas, antes que seja possível prever, as camadas mais profundas dessa batalha de intelectos começam a transparecer e daí em diante segue-se em uma espiral de tensão que revela que um é o reflexo do outro, que ambos são movidos pela mesma obsessão.

Essa pulsão que comove tanto Hanna como McCauley pode ser percebida já no início do filme. Em seus primeiros instantes, quando antes de um assalto, o personagem de De Niro se arma de todas as precauções possíveis, de maneira tão metódica que demonstra que naquele golpe não há a intenção de deixar pista alguma, já fica aparente que em tela temos alguém experiente e devotado àquilo que faz. Porém, as falhas existem até na perfeição e esses erros vêm da imprevisibilidade da violência, tais tropeços são exatamente onde o filme cria espaço para Hanna provar que sua perspicácia se equipara a daquele que a partir dali será seu novo alvo.

Conforme vemos mais dos mundos e das vidas dos personagens, as semelhanças vão florescendo, as pessoas e os cenários podem diferir, mas os sentimentos nutridos são iguais, eles são iguais, só encontram-se em lados diferentes da lei. Os dois servem como figura paterna para as frágeis “crianças” presentes em suas vidas, a enteada adolescente de Hanna (vivida por uma jovem Natalie Portman) e o pupilo impulsivo de McCauley (na interpretação elétrica de Val Kilmer), ambos confiam cegamente nas figuras que guiam seus passos e constantemente depositam suas vidas nas mãos daqueles que gostariam de chamar de “pai”. Além desse traço paterno, há outra condição que também aproxima essas figuras tão conturbadas, a deficiência amorosa, uma certa incapacidade de desviar suas atenções daquilo que seus trabalhos podem oferecer para se deixarem levar por sentimentos mais ternos. Tanto o detetive, um homem casado com uma família em casa, quanto o assaltante profissional, sempre pronto para partir, mas envolvido em um caso que parece despertar nele sentimentos não antes explorados, são incapazes de se livrar daquilo que os faz serem quem são. Entre o amor e a dor, a segunda sempre será a prioridade, é nela em que eles parecem ter construído seu caráter e é sobre ela que lhes é mais confortável repousar.


A inquietação dessas duas almas fica ainda mais evidente quando eles se encontram, ou melhor, se chocam. Cada um desses episódios atribui um novo grau de tensão ao filme, conforme McCauley começa a estudar Hanna e vice-versa, ambas as estratégias (e, por tabela, a vida de cada um) vão ficando mais confusas e, por mais que saibam quem estão enfrentando, não conseguem prever a próxima jogada.

Durante todo o filme parece haver uma atmosfera, pesada e que envolve todos os personagens, ela emana das duas peças centrais desse jogo tomando conta de tudo. Essa atmosfera parece e muito com um conceito concebido por Deleuze, o da ideia de imagem-pulsão, da existência de um certo mundo originário onde os sentidos e os significados superam a imagem para trazer à tona o que realmente está em tela, as pulsões. E são justamente essas pulsões que constituem o todo do clima que permeia “Fogo contra Fogo”. Mann constrói um castelo de cartas para seus personagens e, ao passo que suas glórias tomam forma através dessas construções, são também nelas que suas ruínas encontram fundamento. Essas pulsões, esse senso de violência que existe entre os oponentes extrapola para a imagem em todos os seus encontros.

Muito se fala da cena da cafeteria, onde Pacino e De Niro ficam frente a frente pela primeira vez, parece que ali tudo se torna real para eles, a noção de que um irá ganhar e o outro perder se concretiza. Mas a verdade é que nesse momento tanto o detetive quanto o ladrão já haviam abandonado todas as suas convicções que os ligavam ao mundo fora desse confronto. Há uma cena em especial (também focada em um encontro deles) que, através da sutileza dos olhares que não se cruzam, transmite toda a gravidade do que está por vir, é quando McCauley é quase encurralado por Hanna que a obsessão de ambos emerge. Um encarando uma tela (onde só se vê a silhueta do fora da lei) e o outro escondido nas sombras encarando o nada (mas sabendo exatamente para onde olhar), nesse instante, em que só existe a tensão e a hesitação, os dois semelhantes firmam o contrato de um ser o fim do outro. Aqui, a imagem sequer existe para eles, mas o mundo de pulsões que move a história já tomou por completo a existência dos personagens.


Para que a verdade dos protagonistas se aproxime da verdade de quem assiste, Michael Mann é preciso em criar uma Los Angeles sombria, que permite que a noite seja a morada de seus donos. Suas vidas, seus estilos e seus comportamentos coincidem com uma cidade perigosa e preenchida apenas por luzes de rua, o cenário torna-se tão soturno quanto quem está nele (muito graças também à fotografia de Dante Spinotti). E, de fato, cabe ao período noturno ser o momento em que as peças realmente se mexem, pois, ao dia só cabe a violência e ação que, antes latentes, encontram a sua vez sob o sol.

A conclusão da caça entre esses personagens tão semelhantes vem de forma natural, mas não menos apreensiva ou sufocante. Todos em torno deles exercem uma certa influência sobre os fatos, algo que os direciona para onde precisam estar. Ambos, detetive e ladrão, se encontram em uma encruzilhada e entre o caos, a paz e o fim dessa história que escreveram juntos, escolhem um ao outro. No final, o encontro entre eles é tão cheio de genialidade quanto os anteriores, com a maior classe possível, a única grande diferença é que se trata do último deles.

Por Pedro Combas



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