Vida de Balconista e como grandes filmes podem vir de ideias simples e despretensiosas
- Cinerama Cineclube
- 24 de fev. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 2 de mai. de 2023

Era final dos anos 2000, celulares do modelo flip, internet se popularizando e, na sexta-feira, tudo que se queria era ir na locadora e alugar o combo de 4 filmes para ver no fim de semana. Muito longe da era dos streamings, pessoas se perdiam nas prateleiras de uma locadora em busca do que assistir, seja você um cult que só vê filmes iranianos ou um mainstream que só gosta de filmes do Van Dame. É esse o contexto que, sem perceber, “Vida de Balconista” registrou e hoje nos permite relembrar com muito saudosismo.
Estrelado de forma sublime por um Mateus Solano no início de carreira e dirigido muito bem pela dupla Cavi Borges e Pedro Monteiro, “Vida de Balconista”, de 2009, retrata diversas situações engraçadas que um balconista carioca passa ao longo do seu dia de trabalho. Inspirado na vida do próprio Cavi que é dono da Cavídeo, uma das mais famosas locadoras do Rio, o filme convida seu espectador a observar inúmeros acontecimentos inusitados, que realmente ocorreram fora das telas e, provavelmente, seguem acontecendo com qualquer um que trabalhe lidando com o público.
Ainda assim, essa não foi a primeira vez que Cavi levou essas experiências engraçadas do seu trabalho para o audiovisual. Dois anos antes do filme, Cavi e Pedro fizeram a série “Mateus, o Balconista” (2008-2010), que tem o mesmo plot e foi ao ar pela Oi TV Móvel, um serviço de TV por celular numa época em que o Bluetooth era uma novidade e a tecnologia começava a se democratizar. A série teve 70 episódios curtos (de três a cinco minutos) que Cavi gravou usando sua própria locadora como cenário. Depois dessa experiência inicial, veio a ideia do longa. Sem nenhum aviso de que as gravações seriam para um filme, Cavi chamou os atores e em uma noite gravou todo o material.
À primeira vista, o filme é uma comédia muito simples. Simples, pois se nota o baixo orçamento, e um caráter até mesmo experimental. Ele tem longos planos sequência, lentes do tipo 'fisheye (ou olho de peixe), muita câmera na mão e a qualidade da imagem não é do nível das grandes produções. No entanto, é nessa simplicidade e experimentalismo - que muitos podem dizer que é amador, fato que eu concordo mas vejo como uma grande virtude - que o filme encontra um funcionamento perfeito.
A maneira como a obra foi tecnicamente produzida combina perfeitamente com a leveza que sua história pede. Cenas de improviso, diálogos espontâneos, quebra da quarta parede, um timing cômico perfeito e atores cheios de liberdade. Tudo isso dá um ar de algo como uma conversa informal ou um encontro cheio de piadas com os amigos. Aquilo que vemos na tela é puro divertimento. O próprio Cavi chegou a dizer que todos por trás das câmeras se divertiram muito produzindo o filme, que eram todos amigos em início de carreira, muitos desempregados. E é essa diversão que é passada para o espectador.
Diversão que se mistura com leveza. Essa última resulta da liberdade que todos tiveram. A licença dos diretores experimentarem ângulos inusitados, dos atores improvisarem e de todos se divertirem sem o peso que qualquer grande produção com orçamento altíssimo e prazos apertados teria. Por isso eu digo que a técnica simples e experimental do filme combina tanto com a narrativa, pois se ele não fosse esse ‘experimento divertido’ talvez não funcionaria tão bem.
Mas, analisando além disso tudo, o filme também pode ser visto hoje como uma grande saudade da época das locadoras. Provavelmente é por ser baseado em situações reais que pessoas como eu, que gostam de cinema, se interessam tanto. Ele aborda diversos aspectos e faz várias referências ao mundo do cinema. Com certeza você conhece algum cinéfilo chato que se acha melhor que todos só por ver filmes que ninguém conhece, ou aquela pessoa indecisa que precisa da opinião do outro para escolher o que vai assistir, ou quem só assiste lançamentos e não chega nem perto de algo mais antigos. Esses tipos, junto da estética das locadoras e das inúmeras referências a filmes icônicos (como Pulp Fiction ou E.T.), tornaram “Vida de Balconista” um prato cheio para quem ama cinema.
E se pensarmos que a Cavídeo ainda existe, vemos o quanto o filme é um retrato parado no tempo. Tendo sido parte da vida de muitos cariocas, ela é conhecida pelo seu extenso acervo de filmes, que vão desde os aclamados blockbusters de Hollywood até os filmes mais cults e artísticos. Era para lá que muitos iam quando não existia internet e se queria ver algo fora do mainstream. Com todo esse contexto, a Cavídeo da Cobal se tornou um ponto de referência e de encontro para os cinéfilos da época, marcando as histórias de atores e cineastas que com o tempo alcançaram a fama.
Hoje, ela já não é mais a mesma locadora de antigamente. Saiu da Cobal (local onde foi gravado o filme) e foi para as Laranjeiras, onde permite a locação gratuita do seu acervo, e serve como um centro cultural. Ainda que tenha todas essas mudanças, a antiga Cavídeo segue preservada pelo filme, mostrando um tempo que passou há mais de 10 anos.
É por isso que “Vida de Balconista” é um grande filme. Foi sendo despretensioso que ele encontrou sua maior qualidade e hoje fica como um registro de um dos grandes locais da cinefilia carioca do início dos anos 2000.
Por Gabriel Iquegami
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