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A EMANCIPAÇÃO DO CORPO FEMININO EM JE TU IL ELLE (1974), DE CHANTAL AKERMAN

Chantal Akerman foi uma cineasta belga, pioneira do cinema experimental e feminista. Suas obras sempre mantiveram uma relação íntima com temas relacionados ao feminino, sobretudo questões ligadas à maternidade e à sexualidade Muitos dos seus filmes também retratavam uma vida doméstica mecânica e opressiva, imposta às mulheres pelo patriarcado. Mas, principalmente, seus filmes reivindicavam uma representação mais realista e plural do corpo feminino nas telas, subvertendo a representação hegemônica de um “outro” feminino, que se concretiza no cinema apenas a serviço de um discurso dominante.


Chantal se opunha ao cinema clássico hollywoodiano que, segundo a teórica britânica Laura Mulvey, entendia a figura feminina como um mero objeto de ordem falocêntrica. Para a autora, na concepção ideológica dominante no cinema,


“a mulher existe apenas como o significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando linguístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa a seu lugar como portadora de significado e não produtora de significado.” (MULVEY, 1983, p.438)


Às obras de Chantal Akerman, enquanto representantes de um cinema alternativo, caberia o papel de criar um “espaço para o aparecimento de um outro cinema, radical, tanto em um sentido político quanto estético e que desafia os preceitos básicos do cinema dominante” (MULVEY, 1983, p. 439).


Nesse sentido, Je Tu Il Elle (1974), pode ser compreendido como uma resposta ao discurso preponderante no cinema sobre o feminino, tendo uma narrativa que caminha rumo a emancipação desses corpos. No filme a diretora interpreta a protagonista Julie, uma jovem que deixa seu isolamento para embarcar em uma jornada, em busca de agência sobre si própria.


O filme se divide em três grandes atos. No primeiro, somos apresentados à protagonista Julie, em seu quarto, sozinha. Uma narração em off revela o conteúdo de uma carta que escreve para um destinatário anônimo. Nesse momento da trama, logo após o rompimento de seu relacionamento, a protagonista se encontra profundamente deprimida. Sua aflição pode ser percebida, por exemplo, no modo compulsivo que a personagem recorre ao açúcar para alienar sua dor, em um prazer fugaz que remete ao uso de drogas. Chantal também se utiliza de uma cinematografia sub-exposta e uma atuação recheada de movimentos repetitivos e compulsórios para retratar como seu corpo está, aqui, limitado.



No segundo ato, a protagonista se depara com o mundo masculino, representado pela figura do caminhoneiro. A narração de Julie, que dominava o primeiro ato, é substituída por seu completo silêncio. Nesse momento da trama, ouvimos apenas ao caminhoneiro, ao seu longo monólogo de caráter falocêntrico. A fala do homem foca apenas em seus próprios problemas, descrevendo suas experiências sexuais com sua esposa e com outras jovens as quais ele deu carona; além de tratar sua própria filha como objeto de desejo sexual.


Nesse mesmo trecho do filme, a figura de Chantal permanece encurralada nas bordas do quadro, ou mesmo completamente fora de cena, enquanto a do caminhoneiro fica centralizada na tela. Para Laura Mulvey, aqui, assim como no cinema hegemônico Hollywoodiano, “o protagonista masculino fica solto no comando do palco, um palco de ilusão espacial no qual ele articula o olhar e cria a ação” (MULVEY, 1983, p.446). O ápice desse arranjo pode ser observado na cena de masturbação. Nessa cena, a câmera foca apenas nele, enquanto ele conduz, com sua fala, o modo que a personagem de Chantal deve lhe entregar prazer.


No terceiro ato, a protagonista vai ao encontro de sua amante e é nesse momento que o filme muda radicalmente sua estrutura, subvertendo o status quo. Aqui, a anulação do corpo de Akerman, observada no segundo ato, é substituída por um arroubo de desejo. A cinematografia se ilumina à medida que o filme finalmente reivindica a liberdade daquele corpo, até então subjugado pelas estruturas de poder patriarcais. A protagonista passa a agir de forma autônoma e vigorosa, tornando-se dona de si mesma em um rompante emancipatório. Ao final da obra, a cena de sexo não é enquadrada de forma erotizada, para dar prazer ao espectador masculino, mas de modo a naturalizar o prazer feminino. A mulher castrada (MULVEY, 1983, p.438) das manifestações cinematográficas hegemônicas dá lugar a um exemplar da aceitação da sexualidade feminina.



Chantal Akerman, nessa obra, consegue narrar uma trajetória de descolonização da realidade feminina, derrubando o padrão prevalente de representação dessa existência. Em Je Tu Il Elle (1974), a diretora tira o corpo da mulher de um lugar de submissão, firmado pelo código fílmico hollywoodiano, e o coloca em uma posição de autonomia sobre seus próprios desejos.


Referência bibliográfica:

MULVEY, Laura. Prazer Visual e Cinema Narrativo. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do mundo. Rio de Janeiro: Graal, 1983.



Por: Giovanna Paschoal Damasceno


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