Aparatos e Sujeitos
- Cinerama Cineclube
- 10 de fev. de 2022
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Atualizado: 10 de fev. de 2022
O cinema começou a ser incorporado como atividade cultural, e mesmo como digna forma de expressão artística, em uma fase peculiar da história – o início do século XX. Coincidiu logo com as vanguardas que espocavam por toda a Europa num ímpeto de inovação nunca visto antes em tão curto período de tempo (dentre elas podemos citar: cubismo, futurismo, fauvismo, construtivismo, surrealismo, dentre muitas outras). Pode parecer curioso que os artistas plásticos que antes buscavam feericamente a semelhança com a natureza tal como acreditavam enxergá-la pelos glóbulos oculares tenham começado a partir cada vez mais para a abstração, até chegar na pura geometria cromática, justo quando um aparato que retratava o mundo mais fielmente do que qualquer pincel, martelo, ou cinzel, estava conquistando espaço, sendo aprimorado tecnicamente e tornando-se acessível a pessoas ordinárias.
André Bazin, em seu famoso ensaio Ontologia da imagem fotográfica defende que a renúncia da representação realista - insurgida no âmago do renascimento italiano - pelas vanguardas artísticas modernas, é uma consequência pautada no processo de revoluções técnicas que levaram da câmara escura de Da Vinci à de Niépce. Nesse sentido, “a perspectiva foi o pecado original da pintura ocidental” [BAZIN, 2018, p.30], pois ao buscar retratar a realidade objetivamente, mutilava a percepção através dos seus modelos geométricos (basta olhar o esquema do icônico afresco abaixo para perceber o esquadrinhamento feito por meio de linhas imaginadas com o objetivo de mimetizar o espaço tridimensional na tela plana; uma interpretação grosseira e pobre da visão e do sujeito). Somente com o invento da câmera fotográfica, aparato que finalmente possibilitou a captura imagética indiscutivelmente objetiva - pois o mecanismo havia sido enfim dissociado do sujeito que o opera -, a arte teria sido libertada do seu afã falacioso em busca da semelhança para buscar outros tipos de verdades estéticas.

Já Gombrich, em sua História da Arte, também se dirige numa construção linear da história descrevendo ao longo das páginas como mudanças sociais refletiram nos diferentes movimentos artísticos. Porém, ao invés de focar, como Bazin, nas implicações da fotografia sobre a pintura ao tangenciar a bancarrota da perspectiva renascentista, descreve a revolução liderada por “Manet e seus seguidores”, e em apenas um parágrafo, alude à fotografia como uma aliada desse processo emancipatório. Segundo o historiador da arte: “eles descobriram que, se olhamos a natureza ao ar livre, não vemos objetos individuais, cada um com sua cor própria, mas uma brilhante mistura de matizes que se combinam em nossos olhos, ou, melhor dizendo, em sua mente.” [GOMBRICH, 2019, p. 514]. (Da Vinci já havia preconizado essa “mistura de matizes” com sua técnica do Sfumato, gerando uma graduação sutil de tonalidades entre os objetos retratados ao invés de delinear forçadamente limites inexistentes na nossa visão).

Vejo aqui certo avanço. Não há mais aquele determinismo onde o aparato dita as virtualidades que podem ser apreendidas pelo homem. Parece haver uma tentativa de compreensão do sujeito, sua subjetividade, e por aquilo que o constitui socialmente em determinada época. Entretanto, Gombrich desempenha acima de tudo um esforço descritivo homogeneizante. Não há de fato uma tentativa de analisar minuciosamente disparidades ou pormenores. Também, não podemos culpá-lo. Sua faina de abarcar milênios de arte - majoritariamente europeia - em apenas um livro tinha em vista um objetivo holístico; logo, teve que deixar de lado muitos detalhes.
Essa linearidade histórica presente em Gombrich, Bazin, e diversos outros teóricos que abordaram o assunto modernista, consiste em um dos pontos nodais dos quais Jonathan Crary irá debruçar-se em Técnicas do Observador. Ele crítica a falsificação do sujeito contida nessa compreensão, porquanto o mito da ruptura modernista “depende fundamentalmente do modelo binário realismo versus experimentação” [CRARY, 2012, p. 14], imobilizando, normativizando o sujeito de modo a permitir traçar uma continuidade independente das particularidades do seu estatuto histórico que deveriam ser questionadas; propõe, pois, uma outra narrativa:
"Não basta tentar descrever uma relação dialética entre as inovações dos artistas e escritores de vanguarda no final do século XIX, de um lado, e o 'realismo' e o positivismo concorrentes da cultura científica e popular, de outro. Ao contrário, é fundamental ver os dois fenômenos como componentes superpostos de uma única superfície social, na qual a modernização da visão tinha começado décadas antes. Sugiro que no início do século XIX ocorreu uma transformação mais ampla e muito mais importante na constituição da visão. As pinturas modernistas nas décadas de 1870 e 1880 e o desenvolvimento da fotografia após 1839 podem ser vistos como sintomas tardios dessa mudança sistêmica crucial que já estava em curso em torno de 1820." [CRARY, 2012, p. 14]
A alternativa do autor baseia-se em realizar uma genealogia foucaultiana do observador, onde a câmara escura e a fotográfica não subentendem um determinismo tecnológico como Bazin propôs, nem uma mera consubstanciação de fatores históricos que, por causalidade, desaguaram na descoberta quase mágica por parte de Manet e seus conterrâneos. O que existe de histórico para Crary é o estatuto do sujeito. Este não deve ser entendido linearmente, mas como uma superação descontínua de paradigmas que definem “relações discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais” ao observador [CRARY, 2012, p. 15].
Por conseguinte, esses aparelhos ópticos coligam no seu texto “lugares de saber que operam diretamente no corpo do indivíduo” [CRARY, 2012, p. 17], porque além de comporem objetos de práticas culturais, são também representantes epistemológicos da ordem discursiva engendrando modos de entender o mundo a partir dos quais o horizonte da inovação tecnológica faz-se possível; ou seja, uma inversão do pensamento tradicional, onde são os aparatos que produzem mudanças no sujeito diante da suposta novidade que sua invenção instituísse no mundo. Não contendo em si um sentido unívoco, cabe estudar os observadores que interagem com tais aparatos, e a significação que eles os dão de acordo com cada época.
P.S.
Mesmo no clássico de Kubrick 2001 Uma Odisseia no Espaço, a sequência pré-histórica de rivalidade entre as espécies de hominídeos implica que a utilização do osso como arma foi efeito do que já estava instituído ontologicamente, isto é, a identificação em tribos, a necessidade de confrontar outros grupos em busca de suprimentos básicos para sobrevivência, de mostrar superioridade pela agressão física dos opositores, de preterir os do seu grupo a estranhos. O misterioso obelisco surge precisamente nos momentos caracterizados pela modificação do estatuto do sujeito numa infinda corrida capitalista pela produção, suposta evolução. O hominídeo não pega o osso e então começa a imaginar guerras e consequentemente em torná-lo arma. O fato do conflito estar estabelecido anteriormente à descoberta da ferramenta é semelhante ao fato da transformação ocorrida na observação ao longo das primeiras décadas do século XIX ter precedido a invenção dos aparelhos ópticos como a câmera fotográfica e a filmadora.

Referências:
BAZIN, ANDRÉ. O que é o cinema? São Paulo: UBU, 2018.
CRARY, JONATHAN. Técnicas do observador. São Paulo: Contraponto, 2012.
GOMBRICH. E. H. A história da arte. 16. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2019.
Por Tiago Castro
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