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Aos 80 anos de Neville d’Almeida


Pôster de Rio Babilônia com Antônio Pitanga e Pat Cleveland entregues ao prazer


Fala de abertura concedida por mim no dia 29/07, para um debate sobre Jardim de Guerra e a obra de Neville d’Almeida no Cineclube Cinerama UFRJ, com a presença do grande diretor brasileiro.


Do jardim de guerra da juventude revolucionária sessentista até a frente fria que chega na juventude de playboys cariocas, o cinema de Neville d’Almeida sofreu e provocou diversas mutações, choques térmicos e abalos sísmicos junto com o cinema nacional. Neville navegou com muita firmeza por diversas esferas do cinema nacional enquanto driblava a censura: do cinema marginal-experimental de Mangue-Bangue (1971) ao cinema amplamente popular erótico e psicológico de Dama do Lotação (1978), existem alguns pontos que unem sua filmografia.


Primeiramente, se apresenta um aspecto profundamente confrontacional: nenhum filme de Neville te abraça, te conforta; todos nos incomodam em algum nível — em Os Sete Gatinhos (1980) temos um ápice desse aspecto com uma tragédia rodrigueana que é aterrorizante, mesmo sendo muito cômica, sem dúvidas um dos maiores filmes de terror do nosso cinema. Definitivamente não é um cineasta de eufemismos. Temos também um fator extremamente físico. É um cinema da paixão e dos corpos: sua filmografia é definida pela atração ou repulsão dos corpos em ação, o drama é definido sempre por um aspecto muito táctil, que dá para sentir na pele, ou pelo erotismo e pelo sexo, ou pela violência. É rotineiro entre os atores, falar que trabalhar com o diretor é já esperar que você vá aparecer nu ou filmar uma cena de sexo, mas a obra de Neville exige essa entrega de corpo e alma dos atores. É um diretor que sempre tira muito de suas performances por permitir essa entrega — lembremos aqui das diversas cenas de tortura e de amor sem limites com Joel Barcellos em Jardim de Guerra (1968), de uma possessa Bruna Linzmeyer questionando fisicamente e materialmente os contrastes de classe em A Frente Fria que a Chuva Traz (2015), da cena de Paulo Villaça e Sônia Braga fazendo sexo na praia, completamente tomados pelo momento, cheios de areia, parecendo quase animais movidos pelo instinto. Como esquecer de Paulo Villaça, novamente, entregue na lama se esbanjando na sujeira e retornando a um aspecto primitivo da humanidade, se libertando totalmente de um sistema capitalista em Mangue-Bangue.


Outra grande cena está presente em Navalha na Carne, de 1997, quando o personagem Vado fuma um baseado que roubou do personagem Veludo e fica “seduzindo” o personagem. Brincando com seu desejo, mas nunca permitindo que ele fume. A cena altamente sexual cria esse contraste entre corpos, enquanto comenta sobre a relação entre o poder e o sexo, elementos-chave na filmografia do diretor mineiro. O cineasta enquadra e reenquadra essa simples ação da disputa dos dois personagens pela lente do erótico e do violento em simultâneo, mas quando o personagem Vado cede o baseado para Veludo, o outro nem tem mais tanto interesse. O que interessa é o conflito, o desejar. Nem tanto o que é desejado.


No entanto, digo que seu cinema é físico no sentido de se focar nessa atração ou repulsão dos corpos, não no sentido de se manter firme a um chão estável ou seguro. Muito pelo contrário, D’Almeida embarca no onirismo, no sonho, na metafísica, mesmo nas cenas mais carnais e materiais. Nunca um ménage foi tão onírico e belo quanto em Rio Babilônia, na maravilhosa cena de Joel Barcellos, Denise Dumont e Pedro Aguinaga, censurada pela ditadura. O cineasta filma um ato tão físico sob uma lente transcendental e hipnótica. Esse cineasta que a partir dos anos 60 abala o moralismo e o caretismo da sociedade brasileira, ainda incomoda muita gente em 2021. Em uma época em que a moda é filmar o esterilizado para agradar os grandes estúdios e o algoritmo dos grandes serviços de streaming, Neville ainda incomoda demais com sua ousada originalidade. Cineasta que assim como os personagens de Sônia Braga, Bruna Linzmeyer, Joel Barcellos e Paulo Villaça nunca tiveram medo de se sujar na lama. No seu octogenário, Neville d’Almeida é mais atual do que nunca e mostra a possibilidade de fazer um cinema libertador e belo, filmando o trágico sempre com toques do sublime — cineasta da beleza e do caos.


Jardim de Guerra, filme a ser debatido nessa sessão, é a tentativa de sonhar com um cinema possível e impossível em 1968. Se hoje as coisas começam e acabam no cinema, como uma personagem afirma no filme, Neville d’Almeida tem consciência disso. Em 1968 – ano da morte de Martin Luther King, da passeata dos 100 mil no Brasil, das revoltas de maio de 68 – não é mais possível dar um final feliz ao casal de jovens sonhadores. Os jovens nem mais são sonhadores! O tédio e o ceticismo tomam conta dos filhos de Marx e Coca-Cola, como Godard cunhou. “Depois que Deus morreu tudo é permitido! Depois de Hiroshima, de Dachau, do Vietnam, tudo, tudo é permitido. O corpo untado de gasolina do comandante Ernesto Che Guevara ainda arde. E incendeia os campos da América Latina, que alguém também chamou de América Latrina.” Portanto, em Jardim de Guerra, presenciamos o sonho da juventude brasileira interrompida pela ditadura militar.


Os jovens têm de alternar entre uma suposta consciência política e intelectual e entre a inevitável vontade de viver, amar, curtir, se embriagar, tudo isso faz parte de ser jovem. “E Einstein, Guevara, Trotsky? Não são importantes?” – “Claro que é, tudo é importante, principalmente você”, diz um jovem paquerando uma menina na festa ao som de rock n roll americano. Jardim de Guerra é o amor, a política e essa impossível união. Mas a partir de um certo momento, não dá mais para cantar marchinhas de carnaval sobre as riquezas do Brasil e brincar de fazer cinema. O próprio filme, passional, alegre, agitado e confrontativo implode a partir de sua segunda metade. A câmera na mão, que navega e explora os novos espaços, de Dib Lufti cede à reclusão de um quarto claustrofóbico, os amores, seduções e brincadeiras da juventude são substituidas pela violência da tortura, os cartazes modernos e confrontadores do apartamento onde acontece a festa cedem espaço para a arquitetura moderna, impessoal e monocromática do espaço de tortura. O filme fica muito mais cru, vira um verdadeiro pesadelo de Franz Kafka, sem explicação, claustrofóbico, assim como a ditadura — sem justificativas, ilógica.


Não é como se o filme em sua primeira metade fosse uma utopia perfeita, mas existia esperança, existia juventude, existia amor. Fazer cinema, imitar faroestes e filmes policiais era uma realidade possível. No final, até o Brasil já é irreconhecível: o protagonista tem o seguinte diálogo “onde é que nós estamos? O Brasil fica longe?” Respondem: “O Brasil fica muito longe, você deixou o Brasil tem muito tempo”. O filósofo Gilles Deleuze em “Cinema 2 — A imagem-tempo”, diz que o homem moderno não acredita mais neste mundo, no amor, na morte. Não seríamos nós que fazemos o cinema, mas sim o mundo que nos aparece como um filme ruim. Para o autor francês seria preciso que o cinema filme, não o mundo, mas a crença neste mundo, nosso único vínculo. Jardim de Guerra faz algo parecido. Mostra justamente como é fácil desistir de tudo, do amor, aceitar a situação política, se alienar do mundo. Mas Neville filma o impossível, no meio do AI-5 sonha com um Brasil impossível, em que podemos sonhar com um filme que termina com um casal de jovens felizes se amando, trocando afeto e carícias, fazendo cinema, se divertindo. Na realidade, é tudo uma memória do personagem, mas que se torna um sonho possível a partir do momento em que a cena é projetada em uma tela. Mais do que criticar a tortura ou abordar pautas progressistas, o elemento mais perigoso de Jardim de Guerra, que verdadeiramente assustou a censura, é permitir sonhar. “A revolução é permanente!”, pensa Joel Barcellos em um balão de pensamento desenhado no quadro negro. A censura acabou, a ditadura acabou. O cinema de Neville d’Almeida persiste. Que todos os futuros cineastas, críticos e profissionais presentes aqui hoje possam se inspirar pelo Neville e por sua obra extremamente potente que nos permite acreditar no nosso mundo e sonhar, amar, filmar.



Por Bernardo Bruno

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