O sublime no banal em Storm Video de Samuel Valladares
- Cinerama Cineclube
- 18 de dez. de 2021
- 4 min de leitura

Quando pensamos em documentário o que vem na cabeça da maioria das pessoas são os filmes do Michael Moore ou as reportagens especiais da TV Globo e da BBC. Produtos audiovisuais expositivos, com diversas entrevistas, locuções e um ideal informativo e argumentativo claro. Nesse sentido, Storm Video, a estreia de Samuel Valladares nas grandes telas, está mais para o documentarista brasileiro Eduardo Coutinho do que para o norte-americano Michael Moore. O cineasta que começou a despretensiosamente filmar com apenas 16 anos uma locadora tentando sobreviver à era dos streamings, hoje em dia, quatro anos depois, ocupa — ironicamente — uma das maiores plataformas de streaming do mundo. Seu excelente documentário que estava sendo montado e editado desde 2018, finalmente chegou à Globo Play essa semana, no dia 15 de dezembro.
Em Storm Video, a câmera de Samuel Valladares acompanha uma locadora de mesmo nome localizada em Copacabana e as relações humanas que se dão nesse local, principalmente entre o proprietário Zé Carlos e o recém-demitido Sylvio. Para poder sustentar o negócio, Zé demite todos seus funcionários. Mas Sylvio, o último deles, continua frequentando a loja diariamente, mesmo desempregado. A partir desse pequeno fragmento dessas vidas em Copacabana, Samuel Valladares parte para uma exploração de temas grandiosos como a solidão, as relações humanas e outras questões sociais. É a mesma tradição e método documental que Eduardo Coutinho explorou em seus filmes.
Eduardo Coutinho foi o maior documentarista do Brasil e um dos maiores do mundo todo: seu cinema era composto por uma linguagem que se limitava pelo essencial e pelo registro de momentos únicos audiovisuais. São filmes que a partir de pequenos núcleos partem para uma dimensão macro de questões sociais sem nunca serem óbvios, expositivos ou diretos. Coutinho não busca revelar o “real”, mas sim registrar momentos sempre expondo os dispositivos cinematográficos, as câmeras, as equipes de produção. Consuelo Lins, acadêmica da ECO-UFRJ, discute essas questões em seu livro O Documentário de Eduardo Coutinho: “O que pode o documentário hoje? O que pode essa forma de cinema que quis um dia 'representar o real' em meio a uma proliferação de imagens cada vez mais 'reais' e 'objetivas'? Não muita coisa. Um bom ponto de partida, contudo, talvez seja afirmar de imediato uma das heranças do cinema moderno, muitas vezes esquecida, e não apenas pelos artefatos midiáticos: a imagem não reproduz o real. Isso não quer dizer que o documentário não possa estabelecer diferentes aproximações com o mundo, falar do real de variadas maneiras. Há, no entanto, que se chamar a atenção, do jeito que for possível, para o caráter essencialmente subjetivo, parcial, precário e contingente de toda e qualquer narrativa documental.”
Os filmes de Coutinho são recheados de contradições, subjetividade e abstrações poéticas, o menor dos relatos no mais comum dos prédios em Copacabana revela a maior beleza. Samuel também parte de Copacabana mas ao invés de encontrar um Edifício Master, encontra a Storm Video. Uma locadora que já viveu seu ápice e que vive a pior de suas crises e que provavelmente vai continuar vivendo. As estantes recheadas de DVDs, CDs e livros empilhados preenchem cada frame do filme e envolvem os personagens em cada enquadramento. Mas nenhum enquadramento é mais revelador que Zé Carlos, o proprietário, sentado em frente ao computador, enquadrado nas brechas entre duas estantes, enquanto conversa com Sylvio, o entregador recentemente demitido, sobre DVDs roubados por um cliente. Em meio a esse cemitério de mídias mortas, Zé Carlos ainda resiste, atende à ligações de clientes confusos, faz indicações de filmes e até lê sinopses com uma animada locução para os clientes.
Mesmo com todo o clima fúnebre de uma mídia morta, um negócio em decadência e um desempregado que não tem onde ficar depois de anos ligado a Zé Carlos, Storm Video está recheado de pequenos momentos de vida. Pequenos momentos poéticos que resistem a toda a morte imanente ao redor dos personagens. O filme me lembra um pouco o Mais Do Que Eu Possa Me Reconhecer do Allan Ribeiro, filme de 2015 que retrata o artista plástico Darel Valença Lins em seus últimos anos de vida gravando filmes experimentais com equipamentos antiquados, pintando quadros e relembrando alguns momentos de sua vida sozinho em sua casa. O filme é todo filmado em um digital assumido e granulado e faz um retrato muito interessante entre a morte dos meios audiovisuais, a solidão, a velhice e o cotidiano. O protagonista Darel vive em uma fortaleza de solidão e memórias com uma câmera na mão e diversas ideias na cabeça. Storm Video tem um pouco dessa sensação, mas acho que é um filme mais otimista.
Talvez o mais otimista dos momentos seja a cena composta por repentinos planos-sequências, que quebram uma certa natureza mais fixa e austera da obra. A cena é pura poesia em movimento: Samuel com sua câmera fugindo e correndo atrás de um menino pelos corredores apertados da locadora. Foi um momento especialmente impactante pra mim, que cresci em um prédio acima de uma locadora e que tinha como um dos refúgios essa locadora. Todo fim de semana pegar um ou dois filmes e poder a partir de uma simples caixinha com um disco adentrar em um mundo inteiramente novo, diferente, surpreendente.
Passo muito longe de um conservadorismo, sou 100% adepto das mídias digitais e do streaming, mas a gente acaba perdendo essa dimensão física do cinema por completo com as inúmeras “Netflix” que surgem todo dia. Perdemos o contato humano, perdemos a emoção em ver que aquele filme que queríamos ver finalmente chegou na locadora, ou ver uma capa nova que nos intriga, nos deixa curiosos ou até assustados, quem nunca teve pesadelos com as capas de filmes de terror, né? Storm Video é uma tentativa de resistência das pequenas e até insignificantes relações humanas em meio a toda uma impessoalidade que domina tudo. Que coisa maravilhosa que é a relação de Sylvio com Zé Carlos, um demitiu o outro, os dois levantam a voz, quase brigam, são muito diferentes mas tem um carinho e relação inseparável. Sylvio falando de Paris Texas, guitarras e solos com slide e Zé Carlos só querendo organizar as estantes e atender os clientes. Samuel Valladares encontra o sublime no banal, assim como Bill Murray em O Feitiço do Tempo, como citado por Zé Carlos. Storm Video é sobre estar condenado à repetição do cotidiano até aceitar a beleza de cada momento insignificante.
Por Bernardo Bruno
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