Cinema Novo, Glauber Rocha e Di Cavalcanti
- Cinerama Cineclube
- 16 de set. de 2021
- 4 min de leitura
Atualizado: 18 de fev. de 2022

Glauber Rocha e Dib Lutfi – Foto: Reprodução
Discurso proferido na abertura da sessão discutindo o curta-metragem Di Cavalcanti
O cinema novo tem início ao final da década de 50 e se consolida ao longo da década de 60, sendo reconhecido internacionalmente como um fenômeno. Entre os cinemanovistas mais comentados, podemos citar Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni e aquele que discutiremos hoje: Glauber Rocha. Acho interessante ressaltar que esses diretores percorreram um solo comum de formação, definido pelo cineclubismo, passando pela crítica cinematográfica e pela execução de curtas, até começarem a realizar seus aclamados longa-metragens. Um percurso semelhante ao de vários aspirantes à realização cinematográfica, como notamos também entre muitos alunos e monitores que passaram pelo Cinerama. Além disso, vale apontar que segundo a pesquisadora Maria do Socorro Carvalho, em seu artigo escrito para o livro "História do Cinema Mundial”, um dos sustentáculos desse movimento foram as aquiescidas discussões sobre o cinema e a realidade social do país, tal qual pretendemos conduzir no nosso próprio cineclube com a participação de vocês.
Durante suas trajetórias de gênese, os jovens cinéfilos brasileiros foram inspirados por movimentos internacionais como o neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague francesa e o cinema independente brasileiro da década de 50. Como aconteceu entre muitos diretores do mundo afora que arriscavam produzir um cinema além do padrão hegemônico hollywoodiano, a fama dessas mentes criativas acabou ficando um tanto restrita a festivais de cinema compostos por uma atitude intelectualista, onde amiúde não havia espaço para o grande público. Porém, no contexto brasileiro, a feitura de filmes dentro do padrão estético hollywoodiano é sabidamente impossível pela falta de estrutura e investimento, portanto o cinema novo nascente não só desejava inovar no conteúdo e na forma, como também expressava intrinsecamente uma estética concatenada com o conjunto idiossincrático que define o modo de ser brasileiro. Modo que foi refletido nesse movimento através de algumas características gerais do Cinema Novo, como: a precariedade de recursos tecnológicos empregados nos filmes, o envolvimento com a problemática realidade social de uma ex-colônia sub desenvolvida, e a agressividade nas imagens e nos temas, usada como estratégia de criação.
Um dos motes mais conhecidos do movimento é a máxima de Glauber que diz: “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça!” Habituado com as dificuldades de produção cinematográfica no Brasil, Glauber sintetiza nessa frase boa parte da sua postura criadora. No seu curta-metragem realizado em 1977 — Di Glauber – Di Cavalcanti — observamos em diversos momentos a consolidação do que nos apresenta como esse ímpeto admirável para a desenvoltura de uma expressão artística em um país onde recorrentemente é malquista tanto pelas “massas” quanto pelas “elites”. Tal fenómeno foi melhor descrito por Clarice Lispector em uma frase de A Hora da Estrela que me parece aplicar-se bem a Glauber: “A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim.”
A narração intempestiva que mistura a balada de Vinicius a Di Cavalcanti intercalada à elegia nada melancólica de Glauber composta por imagens e palavras montadas neste filme, evoca uma ideia de brasilidade que remete ao carnaval, ao sexual, ao visceral, como uma homenagem estética ao estilo das pinturas do falecido pintor. Entretanto, tão visceral que o curta chegou a ser censurado. Imagine a situação: em 1976, durante o velório público de Di no Museu de Arte Moderna do Rio, surge um homem com pinta de desatinado, que, junto a sua equipe de filmagem, levanta uma câmera sobre o ataúde coberto de rosas num ambiente carregado pela expectativa de luto. Assim, comportando-se daquela maneira energética que o filme nos revela, pede para as pessoas olharem para a câmera, bulindo de lá e para cá, e depois juntando tudo numa profusão musical que, com um Réquiem tradicional, aparenta-se pouco. Diante de tudo isso, a família do defunto ficou extremamente ofendida e entraram na justiça, onde a decisão dos juízes interditou o filme até o ano de 2003, quando afinal um advogado provou que não existiam fundamentos jurídicos suficientes para justificar a proibição.
Por fim, gostaria de aclamar o estilo que Glauber alcançou com esse filme sob a perspectiva do psicólogo de influências gestaltistas Adolf Arnheim. Em um capítulo sobre movimento, no livro “Arte e percepção visual”, em que compara a pintura com o teatro, o balé, e a literatura (mas, também levo em conta o cinema, pois o que os meios anteriormente citados têm em comum, e que constitui o objeto analisado pelo próprio autor, é a sequência temporal de acontecimentos - em oposição a uma estática pintura, por exemplo. Logo, o cinema também se inclui entre eles); nesse capítulo, encontramos as seguintes frases:
“Devemos dar um passo além e entender que em última análise mesmo uma obra baseada em sequência apresenta não apenas um acontecimento, mas, por meio dele, uma condição de ser. Para usar o preceito oferecido por Lessing no Laocoonte: enquanto a pintura ou a escultura narrativas apresentam a ação por meio de objetos, os dramaturgos ou romancistas usam a ação para apresentar condições de acontecimentos.”
E, algumas linhas abaixo:
“A biografia de um homem, que descreve sua vida desde o nascimento até o túmulo, deve acrescentar à apresentação de um personagem uma condição de ser e de se comportar na sua interação constante com a polaridade da vida e da morte.”
A partir dessas reflexões, proponho que Glauber conseguiu com esse filme alcançar a realização das maiores das homenagens que poderiam ser dadas a Di Cavalcanti; pois, utilizando-se da linguagem cinematográfica, pintou uma tela em movimento temporal, só que ao estilo cubista - o qual Di se imprimiu -, preenchida de acontecimentos da sua vida que vem e vão, díspares à primeira vista, mas que afinal representam a dita polaridade da vida citada por Arnheim. Traduzindo, afinal, a condição de ser do pintor; não apenas na morte, como pretendiam no velório, mas em toda sua extensão vital e artística.
Por Tiago Castro
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