Mostra Exagerados e A Noiva da Cidade
- Cinerama Cineclube
- 23 de set. de 2021
- 4 min de leitura

Em um poster do filme, Daniela se reúne com o povo de Catavento para dançar a quadrilha de festa junina
A Fundação Clóvis Salgado realiza, por meio do Cine Humberto Mauro, uma mostra intitulada Exagerados: Cinema Contra o Baixo-Astral, cuja programação inclui uma série de atividades que contemplam o valor do cinema nacional. Até o dia 29 de setembro, estão sendo expostos seis debates e uma aula, publicados cinco textos críticos inéditos e exibidos, gratuitamente, dezoito filmes brasileiros de relevância histórica significativa, tais como O Homem que Virou Suco (1981), de João Batista de Andrade, A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral, e Anjos da Noite (1987), de Wilson de Barros. Mais informações podem ser encontradas no site da Fundação, através do link a seguir: https://fcs.mg.gov.br/eventos/exagerados-cinema-contra-o-baixo-astral/.
Falarei aqui do filme que abre a mostra, A Noiva da Cidade (1978), dirigido por Alex Viany e escrito por Humberto Mauro, grande representante do cinema mineiro e um dos pioneiros do cinema nacional. Lançado na sessão inaugural do Cine Humberto Mauro, o filme homenageia esse cineasta com a reprodução de uma estética característica de sua obra e na qual se destaca a apreciação da natureza, seja de maneira contemplativa ou pela ação de personagens que montam em vacas, sentem a carícia do vento e se banham na cachoeira — com toda ou nenhuma roupa. Humberto dizia projetar no seu trabalho o dinamismo belo e contínuo das cachoeiras, em cujo fluxo se alojam momentos únicos a serem captados pela câmera à espreita. Alinhando-se a essa perspectiva agradável, A Noiva da Cidade contraria o baixo-astral com uma trama em que, na adversidade, as pessoas assobiam e até o cárcere é motivo de confraternização.
O filme conta a história de Daniela (Elke Maravilha), uma famosa atriz que se cansa do ritmo de vida urbano e retorna à sua terra natal, Catavento, onde espera reencontrar a tranquilidade do campo. Contudo, a fama que traz consigo produz um efeito turbulento na cidade e, já na primeira cena, embora tente fazer uma chegada discreta num canto mais afastado, acaba assustando um filhote de cavalo com seu avião. Perto do lugar de pouso, Daniela conhece Beto (Jorge Gomes), um morador que então lhe dá uma carona até o centro. No caminho, Beto apresenta a ela um senhor chamado Plácido (Wilson Grey), que, ao lhes mostrar com orgulho o único peixe que pescou, se atrapalha e deixa-o cair na água, de forma a cair também e perder seus óculos, anunciando talvez um impasse à placidez que ela ali procura.
E de fato, tão logo adentra as ruas cataventenses, Daniela se vê cercada por faixas de propaganda política, pois sua vinda coincidiu com o período eleitoral e há dois partidos travando disputa pela prefeitura, um em favor do avanço industrial e o outro da preservação ambiental. Cientes da visita ilustre da atriz, os candidatos locais se empenham em conseguir seu apoio público, no que ela evita se envolver de qualquer maneira e até se refugia, escondida, na casa de Beto. Isso poderia dar a impressão de que o filme busca propor um pretenso olhar neutro ou reduzir o engajamento político a uma questão de retórica, mas é marcante a cena em que um debate público culmina no povo elegendo um prefeito ambientalista, bem como alguns diálogos entre Daniela e Beto sobre ecologia e as implicações éticas do progresso tecnológico, num dos quais ela demonstra estar de acordo com a causa do político que acaba eleito. Há, portanto, sem dúvida, um contraste imediato entre os interesses coletivos do povo e os individuais da “estrangeira”, mas nenhuma primazia destes sobre aqueles.
Além dos fatores políticos, o alvoroço com que Daniela é recebida se deve também ao deslumbre geral com a sua pessoa e ao saudosismo caloroso das amigas que lhe querem rever, de modo que são feitas algumas cerimônias. Dentre elas, vale destacar a de uma cena à noite em que ela vai dormir e os cidadãos cantam, à sua janela, a música A Noiva da Cidade, de Francis Hime e Chico Buarque. O coro que eles fazem não é um cortejo que espera algo em troca e nem um êxtase casto, mas um elogio exagerado ou, mais ainda, uma queixa: “ela sabe muito bem que quando adormece está roubando o sono de outra gente.” Daniela, por sua vez, deseja tirar um proveito mais simples e recluso de sua estadia, indo nos rios e montes de Catavento — filmados, assim como os demais cenários, nas cidades mineiras de Angustura, Cataguases e Volta Grande, terra de Humberto Mauro — e na casa recôndita de Beto, com quem acaba tendo um caso amoroso e, após consumar esse duplo romance, com ele e a cidade, ela vai embora.
No mais, outra coisa interessante no filme é o aparecimento, em três momentos de poucos segundos, de uma senhora (Jotta Barroso) fiando uma fibra com uma roca e mirando os acontecimentos com certa distância, enquanto toca ao fundo a melodia de A Velha a Fiar, uma canção popular. Trata-se, provavelmente, de uma referência ao curta-metragem homônimo que Humberto Mauro lançou em 1964 e que é considerado um dos primeiros videoclipes já feitos.
Por João Neri Schneider
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