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Éthel Oliveira: "Trabalho para a honra e glória do povo preto”.

Atualizado: 1 de out. de 2021



Cineasta de Duque de Caxias pretende manter o legado dos seus ancestrais no Brasil


Quando assistiu um debate sobre Sociedade dos Poetas Mortos no Estação Icaraí, em Niterói, Éthel Oliveira (43) percebeu algo a mais no mundo da produção cinematográfica. Quase duas décadas depois, a cineclubista e documentarista, que viveu dez anos em Pernambuco para aprender diferentes culturas, apresenta seu novo documentário Sementes - Mulheres Pretas no Poder, e pretende levar adiante as histórias das pessoas pretas no Brasil.


Quais filmes e documentários você acha que te marcaram como cineasta?

Nostalgia da Luz, do Patrício Guzman. Esse filme é tudo o que eu gostaria de fazer na minha vida, que é juntar o universo do cinema com a cosmologia mais intrínseca dentro da gente. Um filme que eu gosto muito também, de um cineasta chamado Tony Gatlif, Exílios. Dos filmes brasileiros, um que me marcou muito foi Terra Estrangeira, do Walter (Salles). Gosto muito da Lira do Delírio do Walter Lima Júnior também. Os filmes da pornochanchada, a Dama da lotação, os filmes do Neville (De Almeida), que hoje a gente pensando tem vários problemas, mas eram os filmes que eu curtia.


Em uma matéria para o Black Women Radicals, você foi descrita como a cineasta e ativista afro-brasileira que está trabalhando para manter o legado de Marielle Franco e as políticas de pessoas negras no Brasil vivas. Como você assume essa responsabilidade?

Eu acho que essa frase de não deixar o legado de Marielle se apagar tem o sentido do tempo que eu estava produzindo o Sementes. Mas de todo o resto, dessa memória afro-brasileira, isso está completamente de acordo. Eu digo que trabalho para a honra e glória do povo preto. Todos os meus filmes, os meus desejos, estão costurados nessa missão mesmo de fazer luzir a memória, a presença, as potências, as subjetividades e as variadas faces da população preta no Brasil. Porque é muito absurdo que a gente não conheça a nossa história, entende? Que a gente só conheça em parte uma história que é muito subalternizada, e a gente sabe que existe um monte de experiência de resistência dentro desse universo de luta do povo preto no brasil. A gente só conhece uma história muito dramática, sanguinolenta, subalterna, muito aquém da grandeza das potencialidades que nós temos. Eu fui sonhada pelos meus ancestrais, eu sou descendente do povo que construiu as pirâmides, que inventou a matemática, dos povos que têm alta experiência dentro das artes visuais. Lá em Paris, no Museu de Arte de Nova York, estão tudo que é do continente africano, de uma tecnologia, de uma elaboração intelectual e estética que não condiz com uma história que está descrita como primitiva. Eu sempre intui isso, mas o que chegou pra mim foi muito pouco e não pode ser da mesma forma para o meu sobrinho. Meu compromisso é com meu sobrinho de três anos e com os meus ancestrais. Então eu estou muito segura, porque tenho certeza do que eu estou fazendo e também eu estou alicerçada espiritualmente junto aos meus ancestrais. Eu quero contar essas histórias. O Brasil e o mundo merecem essas histórias nossas.


Você e outros 305 profissionais negros do cinema escreveram e assinaram um documento repudiando uma série ficional que seria feita sobre a Marielle, com produção e direção de pessoas brancas. Como foi essa situação?

José Padilha fez esse anúncio da direção desse filme sobre a Marielle. Até aí tudo bem, os brancos dominam esse campo de trânsito de influências. Terrível, mas… Aí teve a emenda que foi pior ainda, porque aí a produtora, Antônia Pellegrino, disse que essa escolha tinha sido porque no Brasil não tinha diretores pretos a altura, muito menos da envergadura de um Spike Lee. Eu estou aqui, tem um monte de gente aí capaz demais de fazer esse filme e mil outros. Eu acho normal que, por esses motivos, esse filme seja dirigido por pessoas brancas, mas o que a gente já deveria ter superado (é) esse tipo de dramática dentro do audiovisual. Porque nós profissionais do audiovisual pretas estamos aí, faço isso a 20 anos, não comecei ontem. Eu sei bem o que que eu estou fazendo. Então, eu não tenho problema que pessoas brancas falam dos pretos, mas elas não podem ter depois pudor em serem questionados. O maior vexame não é elas fazerem filmes sobre temáticas que são próprias do povo preto, é nós sermos profissionais dessa área e estarmos à margem.


O documentário Sementes - Mulheres pretas no poder foi codirigido por você e pela Julia Mariano, que é uma pessoa branca. Como foi essa experiência?

A Julia é muito competente e incrivelmente a gente tem muitas mesmas referências. A gente vem de uma escola do documentário muito próxima, que é (Eduardo) Coutinho, os cineastas lá do Cinema Novo, os cineastas documentaristas latino-americanos. E quanto a Julia ser uma mulher branca, é isso, sobre as questões do trânsito e do acesso. A Júlia já tinha a experiência de ter dirigido um longa-metragem, de ser proprietária de uma produtora, com uma experiência de mercado, porque ela chegou na frente por inúmeras vantagens que a condição dela de mulher branca no mundo dá. Aprendi com a Julia, aprendi com o Sementes. Então nesse sentido foi muito bom, eu e ela tivemos essa sintonia, ela me ensina e me coloca a par de todas as coisas que eu não sei também. Foi muito bom, acho que pra ela também, me ouvir falar, porque ela falava que gostava muito de me ouvir falar porque também aprendia, então o Sementes foi uma oportunidade de aprendizado mútuo bastante simétrico.


Você tem esperança para o futuro das mulheres negras no audiovisual?

Claro que tenho. Como eu falei, fui sonhada pelas minhas ancestrais. Os meus ancestrais tem toda uma história de sociedade, das mais diferentes formas, tinham todas essas histórias lá atrás e aí o advento da escravidao capitalista interrompe essa história. Então, quando os meus ancestrais chegaram aqui, eles chegaram sem ter absolutamente nada, muito parecidos com esse momento que a gente está vivendo agora. Inclusive essa história é a que me salva muito nesse momento da covid, porque agora a gente vive um processo de distanciamento familiar, na iminência da morte, de não saber do amanhã. Então, esses meus ancestrais chegaram exatamente nessas condições aqui. Eles chegaram aqui, dessa maneira, inclusive muito pior, e eu não estou aqui hoje? Mas eles sonharam com a liberdade, em um dia refazerem as famílias, em um dia serem donos da própria história e da própria vida. Isso foi o que os meus ancestrais não apenas sonharam, como lutaram por isso. E eu não estou aqui, não sou uma mulher cineasta? Então eu não posso perder esse sentido de conexão entre o meu passado e o meu futuro. Eu sempre me referencio muito na minha cultura, no meu povo para encontrar saídas para a minha vida. Eu não posso perder o sentido de esperança, porque foi isso que mantiveram os meus ancestrais vivos, numa ascendência que deu nessa descendente que sou hoje, que é o meu irmão, que é o meu sobrinho Theo, que tem três anos.



Por: João Maurício Maturana


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